«(...) E quem sentiu a necessidade urgente de mais auto-estradas a rasgar todo o interior já deserto, de um novo aeroporto para Lisboa, de um TGV de Lisboa para Madrid, outro do Porto para Vigo e de uma nova ponte sobre o Tejo para o servir? Quem foi que andou a gritar “gastem-me o dinheiro dos meus impostos a fazer auto-estradas, pontes, aeroportos e comboios de que não precisamos”? Porque razão, então, o lóbi das obras públicas, os engenheiros, projectistas, banqueiros e advogados que os assessoram, mais a ilusão keynesiana do primeiro-ministro, nos hão-de impingir o que não pedimos?
Fomos nós, porventura - ou os autarcas, os especuladores imobiliários e os empresários do turismo - que reclamámos a legislação de excepção dos Projectos PIN para dar cabo da costa alentejana e do que resta do Algarve? Foi nossa a decisão que a Comissão Europeia classificou como uma batota para contornar as normas de protecção ambiental e ordenamento do território?
Fomos nós que reclamámos a privatização da electricidade para depois a pagarmos muito mais cara ou que, inversamente, protegemos até ao limite o monopólio da PT nos telefones fixos, em troca de termos o pior e o mais caro serviço telefónico da Europa?
Fomos nós que nos revoltámos contra o queijo da Serra feito em mesas de mármore, a galinha de cabidela ou o medronho da Serra de Monchique? É em nome da nossa vontade e da nossa cultura que o «ayatollah» Nunes e a sua ASAE aterrorizam e enfurecem meio país?
Fomos nós que estabelecemos uma sociedade policial contra os fumadores, que quisemos encher Lisboa de radares para controlar velocidades impossíveis e ajudar a fazer da caça à multa o objectivo principal da prevenção rodoviária?
Fomos nós que concordámos em que os agricultores fossem pagos para não produzir, os pescadores para não pescar, as empresas para fazer cursos de formação fantasmas ou inúteis, alguns escritores para terem ‘bolsas de criação literária’ para escrever livros que ninguém lê, os privados para gerir hospitais públicos com o dobro dos custos?
Fomos nós que aceitámos pagar por caças para a Força Aérea que caem todos sem nunca entrar em combate, helicópteros que não voam por falta de sobressalentes, submarinos que não servem para nada, carros de combate que avariam ao atravessar uma poça de água?
Fomos nós que decretámos que o Euro-2004 era “um desígnio nacional” e, para tal, desatámos a construir estádios habitados por moscas, onde jogam clubes que vegetam na segunda divisão ou se aguentam na primeira sem pagar aos jogadores, ao fisco e à Segurança Social? E é a nossa vontade colectiva que anda a animar uns espíritos inspirados que já por aí andam a reclamar um Mundial de Futebol ou mesmo uns Jogos Olímpicos?
Ah, e a regionalização, essa eterna bandeira de almas ingénuas ou melífluas, que confundem descentralização com jardinização? Esse último disparate nacional que falta fazer e com o qual nos ameaçam ciclicamente com o argumento de que está na Constituição, embora nós já tenhamos respondido, clara e amplamente, que dispensamos a experiência, muito obrigado?
Será que não se pode acalmar um bocadinho os nossos esforçados governantes? Pedir-lhes que parem com os “projectos estruturantes”, os “desígnios nacionais”, os “surtos de desenvolvimento”, os PIN, os aeroportos, pontes e auto-estradas, que deixem de se preocupar tanto com o que comemos, o que fumamos, o que fazemos em privado e o que temos de fazer em público? Eu hoje já só suspiro por um governo que me prometa ocupar-se do essencial e prescindir do grandioso: um governo que prometa apenas tentar que os hospitais públicos funcionem em condições dignas e que não haja filas de espera de meses ou anos para operações urgentes, que os professores e alunos vão à escola e uns ensinem e outros aprendam, que os tribunais estejam ao serviço das pessoas e da sua legítima esperança na justiça e não ao serviço dos magistrados ou dos advogados, que as estradas não tenham buracos nem a sinalização errada, que as cidades sejam habitáveis, que a burocracia estatal não sirva para nos fazer desesperar todos os dias. Um governo que me sossegue quanto ao essencial, que jure que não haverá leis de excepção nem invocados “interesses nacionais” que atentem contra o nosso património: a língua, a paisagem, os recursos naturais.
Mas não há dia que passe que não veja o eng.º Sócrates a inaugurar ou a lançar a primeira pedra de qualquer coisa. E encolho-me de terror perante esta saraivada de pedras, que ora ajuda a roubar mais frente de rio a Lisboa, ora entrega mais uma praia a um empreendimento turístico absolutamente necessário para o “desenvolvimento”, ora lança mais uma obra pública inútil e faraónica destinada a aliviar-me ainda mais do meu dinheiro para o dar a quem não precisa. Vivo no terror dos sonhos, dos projectos, das iniciativas de governantes, autarcas e sábios de várias especialidades. Apetece dizer: “Parem lá um pouco, ao menos para pensar no que andam a fazer!”
Além de mais, já não percebo muito bem o que justifica tanto frenesim. Já temos tudo o que são vias de transporte concessionado para as próximas gerações: auto-estradas, pontes, portos, aeroportos (só falta o comboio, mas os privados não são parvos, vejam lá se eles querem ficar com o negócio prometidamente ruinoso do TGV!). Já temos tudo o que é essencial privatizado (só falta a água e palpita-me que não tarda aí mais esse ‘imperativo nacional’). É verdade que ainda faltam alguns Parques Naturais, Redes Natura e REN por urbanizar, mas é por falta de clientes, não por falta de vontade de quem governa. Já faltou mais para chegarmos ao ponto em que os governos já não terão mais nada para distribuir. Talvez então se queiram ocupar dos hospitais, das escolas, dos tribunais. Valha-nos essa esperança.»
Miguel Sousa Tavares (Expresso 10/05/2008)