20080117

O nível da coisa

Todos sabemos que há em Portugal dois pesos e duas medidas. Ainda assim, há coisas que ultrapassam o explicável. Parece-me que a ponte de Chelas p'ró Barreiro virá a ser outra delas.

Aqui fica, de memória, um breve historial dos seus antecedentes.

A páginas tantas da nossa história, nesse momento épico de reabilitação nacional que foi o cavaquismo (num tempo em que o Homem era PM, que é quando se fazem as asneiras, ou se deixam fazer, porque mais tarde, mais acima, já os homens ganham outra dignidade), havia um ministro das obras públicas. Manobras terá havido, certamente, que levaram o inspirado líder a substituir o então ministro por um membro da família Ferreira do Amaral. Uma nota para os incautos; essa família vive na linha entre o Terreiro do Paço e o Estoril há séculos; e há outros tantos anos, com alguns períodos de descanso pelo meio, vai fazendo o favor de ocupar cargos nos diversos governos que os diferentes regimes foram empossando.

Chega então ao cargo esperado o dito membro e, de rompante e com pompa e circunstância decide suspender, salvo erro, o concurso em curso para o alargamento da ponte 25 de Abril - creio que já então se previa também a introdução do comboio na dita ponte. Decide o nóvel ministro que é necessário estudar melhor a situação. E assim se fez. Para compensar, isto é para nos compensar a nós pobres incautos que não compreendíamos porque se punha em causa um concurso que certamente merecera a devida atenção de quem o prepara e decidira, o nóvel ministro oferece-nos a "noiva". Para quem não se recorda, era uma linda faixa de rodagem toda de branco pintada, que, situada no meio das outras quatro, permitia aos utentes circularem para cá, à hora da ponta da manhã, e para lá, à da tardinha.

Vários estudos depois, presumo, e muitos milhões a seguir, seguramente, o já não tão nóvel ministro decide, superiormente apoiado nesse trabalho hérculeo de tantos outros estudantes, lançar um concurso para o alargamento da dita ponte. Salvo erro, para as seis faixas que antes se previa, três p'ra cá, três p'ra lá, mais o dito comboio que tanta falta fazia. Não se lembrou, o então já experiente ministro - pois se tinha tomado tamanha decisão (!!!) -, que brevemente o país iria precisar de velocidades elevadas ou altas, conforme as precisões, que isso era assunto que ainda se não podia estudar; a experiência de Espanha, por ocasião da expo de 1992, ainda não estaria suficientemente amadurecida para se poder pensar em conclusões, quanto mais em estudos.

Por conseguinte, o experiente ministro decidiu muito bem, tal como tinha antes decidido suspender. E por aí não se ficou. De seguida entendeu que o País necessitava de outra ponte para atravessar o rio. O mesmo, para quem não saiba. É que os tais estudantes tinham informado o ministro que uma só ponte poderia substituir pelo menos outras duas que já então se antecipavam. Não havia mesmo nenhum número do Expresso que falasse de obras públicas que não as referisse. Uma delas seria a de Chelas p'ró Barreiro. A outra, mais a norte, permitiria aliviar a sobrecarregada infra-estrutura viária da capital de todo esse imenso tráfego que se dirige do Centro e Norte do País ao Sul.

Fiel à sua já instalada tradição, o novo ministro da família Ferreira do Amaral, optou por uma solução equidistante, do tipo noiva, situada no meio dos outros dois projectos. Foi a ponte Vasco da Gama. Por acaso muito bonita. Por acaso quase correndo o risco de ser declarada ilegal por esse maná que já então se começava a esgotar, a Europa. A grande vantagem da segunda noiva do ministro, dizia ele, é que permitiria não ter de construir as outras duas.

Entretanto, visto que as coisas haviam sido muito bem estudadas, o dito ministro viu-se na obrigação de oferecer à Lusoponte condições leoninas que lhe permitiram aceitar o encargo da exploração da ponte, mediante a promessa da exclusividade sobre todas e quaisquer novas travessias do rio em causa. Eventuais buzinões à parte, a Lusoponte lá aceitou. Para o maior bem do todo nacional e em nome da coesão do país.

Imaginem agora a tristeza do, agora ex, ministro, quando anos mais tarde constata que não só se fez a tal ponte mais a norte, lá para os lados do Carregado, como ainda foram fazer mais uma perto de Santarém, e agora o vêm ameaçar, nas suas novas funções de gestor da amiga Lusoponte, com a construção da malfadada Chelas p'ró Barreiro... Tanto esforço para nada! Que desconsolo.

PS. A título de curiosidade, o dito ex-ministro ocupou entretanto, enquanto descansava para se preparar para este novo embate, diversas funções menores, como por exemplo na Galp a quem pretendia retirar do negócio da exploração de petróleo e gás, que tão maus resultados tem dado à companhia desde que o ex-ministro dela se aposentou e a empresa foi finalmente privatizada.

Certamente as reformas que o ex-ministro hoje auferirá, para além das parcas recompensas que a Lusoponte seguramente lhe disponibiliza para o compensar do esforço de defender o que lhe ofereceu, não serão suficientes para o ressarcir devidamente dos enormes sacrifícios, pessoais e profissionais, que terá feito para o maior bem do País.

Disclaimer: a história é puramente ficcional. As famílias não tem culpa da qualidade dos seus rebentos, nem para bem nem para mal. Em todas haverá grandes rebentos e outros mais pequenos. Os homens não se medem aos palmos. As obras também não.

1 comentário:

Jose Silva disse...

Um pequeno «soprano» !

Leituras recomendadas