20080104

Américo Silva, Famalicão

Há experiências irrepetíveis. Uma era circular nas estradas estreitas e de curvas apertadas no coração do Vale do Ave, ainda antes das grandes vias rodoviárias que rasgaram a região a partir dos anos 90. Das estradas pejadas de trânsito – automóveis, camionetas e motocicletas, onde o risco de vida espreitava em qualquer ultrapassagem – persistem duas imagens fortes.

Havia fábricas porta sim porta sim, mas poucas mereciam o nome; a maior parte era uma garagem ou o piso térreo da residência familiar, num exemplo muito concreto de desordenamento urbano; a outra era o movimento a partir do meio da tarde, quando as fábricas fechavam e a massa de trabalhadores – sobretudo mulheres – invadia as ruas, a mesma experiência, com um século de intervalo, da saída da fábrica dos irmãos Lumière.

A ligação dos têxteis ao Vale do Ave tem mais de um século, mas acentuou-se a partir dos anos 60, com a entrada de capital estrangeiro interessado em aproveitar o imenso reservatório de mão de obra barata disponível, depois do acordo de Portugal com a EFTA. O Vale do Ave impôs-se como a região têxtil do país: perdeu o mercado das colónias mas ganhou com a desvalorização do escudo e mais tarde com a entrada na União Europeia.

Habituado a viver em crises cíclicas, muitos terão desvalorizado os sinais que chegaram, com a década de 90: as primeiras falências em massa e mais tarde a abertura do comércio têxtil, integrado nas regras gerais da Organização Mundial do Comércio, após um período de transição de 10 anos, que terminou em Janeiro de 2005.

Foi para fazer face ao inevitável aumento da concorrência internacional, para o qual o sector português estava claramente pouco preparado, que o Governo de Cavaco Silva garantiu apoio suplementar para o sector e para região.

Mas, meia dúzia de anos volvidos, com as exportações a crescerem, ninguém mais quis ouvir falar em crise. E em 2005, quando a abertura aconteceu, ainda por cima com o efeito adicional da adesão da China à OMC, o mundo desabou.

É neste quadro, em que alguns dos maiores grupos têxteis portugueses entraram em queda livre, alguns até virtualmente desaparecidos como a Maconde, que faz sentido realçar o caso da Ricon.

A têxtil de Ribeirão, encaixada no tal miolo “típico” do Vale do Ave, soube dar os passos necessários para reduzir a dependência do baixo custo. A família Silva fez o que era preciso: confeccionador de fatos de homem, nos anos 90 estabeleceu uma relação preferencial com a Gant, cujos direitos para a Europa foram adquiridos por um grupo de sócios suecos, que aproveitaram para requalificar a marca na gama alta, acima do seu posicionamento no mercado norte-americano. Mas a Ricon não se limitou a uma relação fornecedor- cliente: assegurou a licença para Portugal, Brasil e França; depois tomou posição no capital da empresa cotada na Bolsa de Estocolmo, que tem vindo a aumentar paulatinamente nos últimos dois anos, estando já perto de 10% e com o objectivo assumido de chegar aos 20.

A família Silva está agora com um problema. Com a OPA do grupo suíço que controla a Lacoste sobre a Gant tem oportunidade de fazer uma significativa mais valia – segundo fonte oficial da empresa, da ordem dos 20 milhões de euros, acima das primeiras estimativas do Jornal de Negócios – mas pode pôr em risco o trabalho desenvolvido nos últimos dez anos.

Acabe a Gant ligada à Lacoste ou seguindo o seu caminho independente, há um mérito que já ninguém tira a Américo Silva e aos seus filhos Pedro e Rui: terem projectado uma empresa do Vale do Ave para a alta roda financeira e demonstrado que há espaço na Europa para empresas têxteis competitivas

Por Luísa Bessa no Jornal de Negócios

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